MOBILIDADE FORA DA REDE – com ajuda da rede
Mobilidade
14 min
20 agosto 2021

MOBILIDADE FORA DA REDE – com ajuda da rede

Carros autônomos, conectados, elétricos e compartilhados. Cidades que usam a tecnologia para resolver problemas que vão do trânsito ao saneamento básico. Ambientes urbanos que privilegiam espaços públicos e interação social. Ao contrário da ficção científica, o futuro é promissor – e mais perto do que se imagina.“Vemos na tecnologia, na passagem do analógico para o digital, oportunidades de nos tornarmos ainda mais humanos e resolvermos os problemas deste século”, afirma Peter Cabral, Expert da SingularityU Brazil e pioneiro em economia de compartilhamento e gig economy no Brasil e América Latina. Na entrevista a seguir, concedida ao blog do Learning Village, ele compartilha mais detalhes sobre sua visão para o futuro da mobilidade e das cidades.

Como a tecnologia pode ajudar a minimizar problemas de transporte, alimentação, armazenamento de água e outros gargalos urbanos?

Com mais pessoas conectadas, haverá mudanças nas necessidades e nas avaliações das experiências com empresas, produtos e serviços. Tende a ser cada vez mais interessante/valioso ter acesso do que ser dono de um ativo, o que explica o sucesso das soluções de economia compartilhada, desde mobilidade até moradia. Pensando em tecnologia e alimentação, por exemplo, podemos esperar uma presença cada vez mais assertiva dos Vertical Farming Projects, que já existem em São Paulo e, por estarem em um ambiente controlado, conseguem ofertar alimentos de qualidade num preço justo, além de reduzir o uso de fertilizantes, pesticidas e eliminar agrotóxicos. A questão da água, propositalmente, associo com saneamento básico, ou seja, a discussão é sobre infraestrutura. Aproximadamente metade da população brasileira não tem acesso a serviços e sistemas de saneamento. A implantação de tecnologias como sensorização digital, IoT, ciência de dados, 5G, automação, inteligência artificial e fog computing são apenas algumas das ferramentas que farão a diferença neste processo de modernização em pleno século 21. E alguns setores em especial mostram sinais prementes de processos ultrapassados e obsoletos. Não faz mais sentido um usuário do transporte público ficar parado num ponto de ônibus sem saber quanto tempo terá que esperar e ainda ir a um guichê para carregar um cartão ou comprar um bilhete. Emigrantes digitais pós-pandemia, eles entenderam que existem opções como bicicletas públicas, e que é possível chegar com mais facilidade ao destino. Em resumo, não dá para resolver as questões deste século sem aplicação de tecnologias.

Falando em 5G, o que ele pode trazer para as pessoas em termos de melhora na qualidade de vida?

O 5G é muito mais do que velocidade de internet. É a possibilidade de transformar completamente a vida das pessoas e a forma de ser e estar no mundo e na economia digital. Com uma latência e velocidade até 20 vezes maior, é possível obter informações, processar cálculos complexos com maior disponibilidade de conexão com a nuvem, tudo isto com diminuição do tempo de downloads/uploads. Desta forma, aumenta a proteção dos dados, a segurança pública, permite informações precisas sobre ocorrências e acidentes, agiliza os pronto-atendimentos médicos, executa rotinas e processos de automação com exímia confiabilidade. Quando o tema é cidades e olhamos para o tecido urbano e vislumbramos soluções futuras de mobilidade digital disruptiva com carros autônomos, a latência e a disponibilidade do 5G são condição sine qua non. Ele também transforma o marketing digital e reescreve a relação do consumidor com marcas e produtos.

Tem então impacto na economia…

Sim, as disrupções tecnológica e corporativa vêm acompanhadas do movimento dos rising billions ao mesmo tempo em que coincide com a disseminação da tecnologia 5G. O fundador da Singularity University, Peter Diamandis, defende que há um movimento que começou em 2016 e que, na minha opinião, poderá se prolongar até 2023, onde haverá de 3 a 5 bilhões de novos consumidores, pessoas que nunca compraram online nem fizeram uploads. Isso vai turbinar a economia mundial. Na SU, chamamos este grupo de rising billions.

Quais cidades do mundo conseguiram se tornar inteligentes e qual o papel da inovação nelas?

Para responder esta pergunta, precisamos começar pelo óbvio que é definir o que é uma Smart City. Na minha definição, elas podem ser vistas como sistemas sociais envolvendo os setores públicos e privados que fazem uso de tecnologias, ciência de dados e energia para construir infraestrutura direcionada à geração de atividade econômica e melhorias na qualidade de vida, num ambiente urbano cada vez mais sustentável e com baixa emissão de carbono. É importante partir desse princípio porque a tendência natural é associar Smart Cities a algo projetado do zero como a The Line-Neom, na Arábia Saudita, e a Woven City, no Japão. Mas não temos tempo para esperar pela cidade perfeita. As intervenções são urgentes e imediatas, pois até 2050 aproximadamente 70% da população, de acordo com previsão da UN Habitat, viverá em ambientes urbanos. Cidades que vão se alinhando a essas necessidades são justamente as seculares e milenares, como Singapura, Seul, Londres, Chicago, Dubai, Amsterdã, New York, Barcelona, Paris e Hong Kong, que investem em equipamentos e infraestrutura que permitem que as pessoas caminhem, façam trajetos curtos de bicicleta e possam conviver em espaços públicos em segurança. O que vemos hoje na prática é que as Cidades-Estado estabelecidas na época renascentista oferecem essencialmente características de vias largas e praças amplas com monumentos históricos, que acabam por servir na atualidade de palco a magníficas intervenções de linha tática geourbana, e podem servir de inspiração. Ações que transformam e revitalizam estes ambientes construídos de outrora em cidades conectadas e ultramodernas.

É possível ter cidades inteligentes em países tão desiguais como o Brasil e que já nasceram com falta de planejamento urbano?

Sim, a transformação urbana é possível em qualquer ambiente construído. No caso brasileiro, duas representantes de Smart Cities são citadas no ranking da Globalization and World Cities Research Network: São Paulo e Rio de Janeiro.  Isso mostra que mesmo com as carências apresentadas pela geografia urbana no contexto social e político é possível ter esse aproveitamento e otimização do espaço em prol da geração de valor econômico e qualidade de vida. Respondendo à sua pergunta, se considerarmos que a maioria das cidades apresenta mau planejamento e desigualdade social, temos que ter a visão do copo meio cheio. Já se fez muita coisa boa e temos que continuar a tomar partido das intervenções “pop-up” de urbanismo tático, que revigoram bairros com soluções leves, rápidas e baratas, aproveitando e reinventando o espaço público na busca da criação de experiências que promovam o desenvolvimento social, econômico e político da cidade. Podemos considerar como exemplos exposições temporárias e itinerantes, parklets, grandes tabuleiros de xadrez, vasos de plantas e vegetação, equipamentos lúdicos ou de exercício físico, parques e áreas de lazer. Adicionalmente, vias que eram usadas exclusivamente por automóveis podem passar a ser compartilhadas com outros modais e/ou dedicadas a pedestres. De uma forma mais generalizada, em São Paulo, especificamente no Centro da cidade, região rica em comércio, patrimônio histórico e com forte presença do transporte público, podemos citar a revitalização e transformação do Vale do Anhangabaú em um polo público de lazer, mais seguro, animado e com vida própria, como uma política urbana municipal que visa a qualificação e ressignificação de um espaço público

Educação, hubs de inovação, startups. Como esses ecossistemas podem colaborar para a mobilidade urbana?

Os sistemas de transporte ainda estão muito pautados nos hábitos analógicos. Algumas soluções simples, às vezes um aplicativo, são capazes de trazer um impacto imenso e transformar a forma com a qual o cidadão interage com os modais e com o ambiente urbano. Um exemplo claro disso foi o que o Uber provocou nas cidades. As startups não têm medo de errar, então transformam de forma rápida porque solucionam questões de forma simples. O grande segredo para ter sucesso é eliminar o que for analógico, por isso, inteligência artificial é tão estratégica. Veículos autônomos, conectados e compartilhados, por exemplo, envolvem transporte individual e coletivo onde deslocamentos poderão ser feitos não só por terra como pelo ar através de eVTOLs (veículo elétrico de decolagem e pouso vertical). Isso impactará na mobilidade de pessoas, no transporte de carga, logística e micrologística dos grandes centros urbanos. Assim, pincelando este futuro próximo, a chance dessas soluções inovadoras nascerem em incubadoras, startups, parques tecnológicos ou ecossistemas como o LV, não só é muito grande, como é óbvia, pois já vemos isso acontecer hoje.  

A maneira como as pessoas trabalham mudou radicalmente em decorrência da covid-19. Esse cenário deve permanecer? O que isso impacta na maneira como vivemos as cidades?

Os ambientes urbanos são feitos por pessoas. Existem bairros que viviam do movimento de empresas e escritórios. Pessoas que precisavam almoçar em restaurantes próximos, que estudavam idiomas e praticavam atividades físicas para aproveitar o horário do almoço. Os estacionamentos off-street viviam desse público. Muitas empresas perceberam que nem todo mundo precisa estar fisicamente numa sala de reunião para que surjam boas ideias e soluções para os desafios. Algumas perceberam que o trabalho remoto não impactou o faturamento de forma negativa. Ao mesmo tempo, muitos profissionais se adaptaram bem à realidade de trabalhar à distância. Isso tem consequências para o ambiente urbano – desde prédios que ficam com andares ociosos até estabelecimentos comerciais que sentem diferença no movimento de clientes. Os informais – que em 2019 chegaram a representar 41% dos trabalhadores do país – também devem ser considerados. É comum vermos pessoas vendendo doces e todo tipo de bem nos arredores dos escritórios. As reflexões que ficam são: se a empresa reduziu espaço porque tem pessoas em home office, em um cenário hipotético pós-pandemia ela reocuparia os andares devolvidos ao condomínio ou criaria formas híbridas de trabalho que economizam espaço? Será que as pessoas voltam para o transporte público com os mesmos olhos ou vão exigir comodidades, conforto e praticidades que descobriram ser possíveis com formas de transporte alternativo? E será que as empresas de transporte alternativo devolverão a fatia de mercado ou vão lutar por esses usuários? Quem sabia quem era o seu cliente antes da pandemia, não o conhece mais. Quem for mais digital, mais rápido e menos avesso ao erro vai conhecer melhor o cliente e ganhar a disputa.

Como conciliar tecnologias exponenciais e seres humano para que tenhamos um mundo melhor?

Mais do que nunca, a gestão de dados e big data analytics tem a capacidade de mudar completamente os rumos do negócio – o sucesso do business depende da interpretação dessas informações coletadas. No transporte de passageiros, qual o destino que aquele usuário mais procura? De quanto em quanto tempo compra bilhetes? Quais as características do comportamento desta pessoa? São informações valiosíssimas que vão muito além de marketing, do Google Analytics – oferecer um desconto ou atrair clientes para a página da empresa não funciona mais. As tecnologias são desenvolvidas para beneficiar o ser humano. Não podemos encarar os dispositivos de inteligência artificial, suas entidades e avatares como se todos fossem o vilão Hal 9000 do filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço”.  Aquelas ideias trazidas pelos filmes futuristas de que as pessoas e cidades seriam estéreis, inorgânicas e reféns da máquina, felizmente, não aconteceu nem acontecerá. Ao contrário. Queremos cada vez mais interagir e estar perto da família, dos amigos, dos vizinhos, atuar na comunidade local – e nas cidades, queremos definitivamente resgatar e humanizar o espaço público. Vemos na tecnologia oportunidades de nos tornarmos ainda mais humanos.

Renata Piza

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